domingo, 19 de janeiro de 2014

Storytelling familiar

A Gestão do Conhecimento não está restrita aos meios acadêmicos e organizacionais. E nem a metodologia de storytelling prevista somente para esse meio. Descobri que resgatar as histórias familiares é fazer gestao do conhecimento. Sentar e ouvir minha mãe contar suas histórias é fazer storytelling. 

As histórias de família logicamente são sempre muito mais interessantes pra quem está envolvido ,  por  fazer parte do  inconsciente familiar e porque as vezes ajudam a  explicar ou entender melhor a si próprio.  

A verdade é que sempre tive vontade de escrever sobre meus antepassados, especialmente sobre a minha avó Lucinda, por sua natureza cabocla e corajosa. Mas nas conversas com minha mãe fui descobrindo o lado interessante de outros personagens familiares como meu avô Camilo e com ele a história da imigração italiana no Brasil. 

Daí começou a crescer o interesse pela história e miscigenação da cultura brasileira. Contar a história da família é contar um pouco da história de qualquer brasileiro. 

Segue então uma das muitas histórias da minha mãe Isolina sobre sua infância, no interior de Minas, mais precisamente em Sapé de Ubá, hoje conhecida como Guidoval, perto de Ubá.  Algumas histórias estão escritas em um caderno e outras são contadas e reveladas nas conversas diárias. 

...
Eu brincava com aquele cabritinho, um filhote, como se fosse um cachorrinho de estimação. Até brincar de esconder ele sabia. E na hora de ir pra escola tínhamos que amarra-lo, se não ele ia junto.
Quando comecei a frequentar a escola, tinha 7 anos. Pra sabermos a hora de sair de casa, minha mãe observava o reflexo do sol na cozinha... quando ele chegava no meio da cozinha, ela mandava que eu e minha irmã saissemos. Só ela sabia o local certo do sol refletido no chão de terra batido. Ficávamos atrás dela, perguntando:

- Já pode ir mãe?

- Agora pode, ela dizia.

Essa era a forma que ela regulava a passagem do dia.  Se não tinha sol era pela claridade. Se chovia? Provavelmente a gente não ia, porque a estrada ficava cheia de lama. 

Como morávamos na roça, pra chegar até à escola, eu e minha irmã saíamos juntas e andávamos uns quatro ou cinco quilômetros de estrada de chão.  Todo dia minha lembrava de levar um pedaço de pau , que servia para enfrentar perigos visíveis : cobras, sapos ou mesmo pra enxotar alguma vaca pelo caminho.  Para os perigos invisíveis, bem comuns na roça,  minha mãe ensinou uma reza.  Essa reza servia especialmente para o retorno, mais tarde nos dias que escureciam mais cedo. Qualquer coisa estranha, danávamos a rezar:

- São Bento n’água benta.
Jesus Cristo no altar.
 Arreda bicho mau
Que Filho de Deus quer passar...

As vezes acontecia de chegarmos mais tarde, quando tínhamos que passar pelas casas das senhoras da cidade e pegar roupa para minha mãe lavar. Então,  voltávamos carregadas de trouxas de roupa.
Nessa época, só ficaram em casa os filhos mais novos e a fase era especialmente difícil. As irmãs mais velhas, a essa altura, já estavam casadas ou trabalhavam fora, em casa de família.

Não me lembro muito bem de alguma fase boa na família. A vida era muito simples mas comida não faltava mas o que se passou nesse período foi especialmente difícil.  

Passou pela região uma companhia de construção de estradas, requisitando trabalhadores e meu pai e irmão mais velho foram selecionados. Conforme a obra andava, lá se ia meu pai e meu irmão cada vez mais longe. Deixou pra trás a minha mãe com as cinco crianças na roça para cuidar e alimentar. 
Meu pai deixou um crédito aberto na única vendinha da cidade pra comprarmos o que fosse necessário para ele pagar quando voltasse.  Até que um belo dia esse crédito foi cortado sem explicações.  

Meu pai tinha fama de brigão, pavio curto.  Correu uma notícia em um jornal local que por outras bandas, na tal companhia de estradas, tinha havido uma briga feia no  acampamento dos trabalhadores. Um  homem recusou  a comida que estava sendo servida, reclamou  e, ainda jogou tudo em cima do administrador da obra. No revide, o abusado foi morto à facadas pelo administrador.

Como em todo lugar sempre tem um fofoqueiro de plantão, a notícia virou fofoca  porque o tal língua solta saiu afirmando pela cidade que o homem esfaqueado era o meu pai.

- Mataram o Camilo, ele gritava.

Minha mãe ficou desesperada, a gente chorava junto e minha mãe pensava que com o gênio ruim do Camilo, não era difícil que isso tivesse acontecido.

Sem crédito nas vendas , minha mãe teve que apelar pela ajuda de um tio que morava ainda mais longe.  Lá fomos nós todos juntos pela estrada. Eu me lembro com clareza desse dia. O meu tio também era pobre mas dividiu tudo o que tinha na despensa conosco. Pra carregarmos, montou vários embrulhos em  panos de saco amarrados na ponta, de forma que cada um pudesse carregar uma parte. E ainda deu um cabritinho que já tinha sido desmamado. A idéia era que minha mãe vendesse pra ficar com um pouco de dinheiro.

Voltamos felizes da vida, eu especialmente, puxando o bichinho amarrado numa corda.  Chegamos tarde  e quando já íamos deitar, escutamos a voz de um homem chamando lá na estrada que dava para o caminho onde ficava nosso rancho. Ficamos todos assustados porque o lugar era ermo, sem vizinhos.

- Ô Lucinda, sou eu Camilo!!

Ele e meu irmão entraram e foi uma choradeira só.

Um tempo depois o destino do tal cabritinho se cumpriu e ele foi vendido. Meu pai não recebeu salário da empreiteira e foi o jeito pra pagar as despesas.

Fiquei triste por um bom tempo. Ainda bem que criança esquece rápido né... ?

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