sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Motim a bordo

Cheguei ao escritório no horário marcado, era o primeiro dia de trabalho como gerente de recursos humanos daquela empresa...

Já estava sendo aguardada pelo presidente e diretor administrativo da empresa:

 - Você chegou em boa hora, já temos uma demanda urgente pra você tratar, disseram. Temos aqui na sala de reunião toda a tripulação de um navio, que se revoltou com o Imediato e vieram até aqui pra reclamar. Já os ouvimos. Queremos que você converse com eles e tome ciência da situação nos detalhes. O que aconteceu. E depois nos diga o que você pensa como podemos ou devemos tratar esse assunto.

Bem, a essa altura fiquei sabendo que a embarcação estava parada no cais pra abastecimento e parte da tripulação desceu e foi até ao escritório. Era um motim, na verdade, porque o período de embarque ainda não tinha sido finalizado. Eles se recusavam a voltar.

Depois de quase um ano em estado de semi reclusão, aflorando os sentidos, esse sem dúvida parecia ser um grande recomeço, um choque de realidade. Acordei do sono.

Ao entrar na sala de reunião, que cabia em torno de 10 pessoas sentadas, havia ali no mínimo 20 pessoas. Estava presente o comandante do navio, alguns oficiais, o chefe de máquina e mais um tanto de marinheiros de convés. Não sei ao certo. Só não estava mesmo presente o Imediato, o foco da discórdia.  Eles abriram caminho pra eu passar e me ofereceram uma cadeira. Mal sentei o chefe de máquinas, o outro ator principal da história começou a falar.

Resumindo, a historia se desenrolou principalmente entre o imediato e o chefe de máquinas. O imediato “sugeriu” que o tal chefe de máquinas, que sempre fazia muito exercício na academia no navio e era do tipo forte e musculoso,  utilizava “ bomba”( ou anabolizantes) e que, por conta disso, estava apresentando comportamento agressivo, além de  ficar estimulando para que os outros também o fizessem. As palavras do Imediato ganharam força internamente no navio e rapidamente surgiram opiniões internas e facções contrárias e a favor da opinião do Imediato. Daí o que era somente bomba, passou a ganhar conotação de drogas, anfetaminas, etc. E foi dessa forma que a notícia chegou até aos ouvidos do chefe de máquinas.

Como ele exercia uma liderança informal entre os marinheiros, grande parte ficou solidária com sua revolta. E o assunto cresceu e ganhou manchete no navio. Daí por diante o clima foi ficando tenso, a discussão verbal começava a ganhar contornos de agressão física e, antes que a coisa ficasse pior, o Comandante decidiu atracar o navio no cais...

E  aqui entrou eu na história.  - E agora, José, para onde? – pensei, lembrando-me do trecho da música.

Nunca havia trabalhado com tripulação de navios, era tudo novo.  Mas eu era profissional de recursos humanos e eles eram os recursos: pessoas, humanos. Isso deveria bastar. Tinha buscado informações na internet também sobre o tipo de negócio da empresa, etc. Mas tinha também uma imagem estereotipada de marinheiros, não preconceituosa.

Pra começar, cabia a mim naquele momento ouvir. Não estava ali para solucionar um litígio e nem para punir ou julgar. Muito mais para entender o conflito.  Então basicamente foi o que fiz.

Ouvi respeitosamente e com seriedade toda a história até o final, sob o ponto de todos os presentes que quiseram se manifestar com ou sem a minha interferência.

O chefe de Máquinas foi o primeiro a falar. Explicou que tinha orientação de nutricionista e professor de educação física para utilizar os tais complementos e que o imediato entendeu isso como drogas e ficou “espalhando”.  Ele se colocou à disposição para fazer os exames necessários para comprovar que estava limpo.

O comandante , quando perguntado, não se posicionava, nem sim, nem não, muito pelo contrário. Diz que tentou esclarecer o fato com os dois, mas percebeu que a situação poderia piorar.

O chefe de máquinas, de camiseta sem mangas representava mesmo o estereótipo de um homem do mar: musculoso, falante, bom de papo, boa pinta, tatuagem no braço. Entendi em parte a liderança que exercia entre os marinheiros. Percebi ainda a liderança tímida do comandante, que deveria ser a autoridade maior no navio.

Eles saíram da sala aparentemente aliviados, ali mesmo combinaram de retornar à embarcação e prosseguir viagem, num primeiro momento substituindo os dois atores principais por outros, de outros navios.  Agradeceram .

Dali pra frente, durante o tempo que fiquei na empresa, passei a ser a amiga e confidente dos tripulantes.  

Avisei que ouviríamos o mediato.

- Ele não vale nada, a senhora vai ver – disseram .


Nem preciso dizer que a versão do imediato acrescentou diversas outras variáveis de contexto. Ele confirmou o que tinha dito, reforçou e ainda acrescentou mais detalhes sórdidos à situação e “queimou o filme” do tal chefe de máquinas, afirmando ser liderança negativa.

Nas entrelinhas ainda, deixou transparecer a insatisfação quanto a sua posição na hierarquia. Como imediato ele não tinha a mesma autoridade do comandante, que no seu ponto de vista, não a exercia. Também não tinha também a liderança. Estava no limbo.

Traduzi  posteriormente minhas observações e prévia análise sobre os fatos. A situação era complexa e tinha ainda mais outros muitos fatores de contexto envolvidos, e  que não se limitava aquele episódio, mas precisávamos tomar decisões mais imediatas naquele caso.

Em um primeiro momento, decidimos que a tripulação voltaria à embarcação, mais calma, sem o Imediato, já que faltavam poucos dias para o desembarque. O imediato ficaria em casa, à disposição, até o próximo embarque. Em um segundo momento, desmembraríamos toda a equipe em outras embarcações, formando uma nova tripulação, inclusive o Imediato.  E observaríamos o comportamento dos envolvidos.

Existe um protocolo a ser seguido quando fatos como esse acontecem em um embarque, previsto nos procedimentos dessa área e todos eles seriam seguidos antes de novo embarque.

O chefe de máquinas realmente fez todos os exames necessários para comprovar ou não a presença de drogas.

Conclusão:

Bem, faltou liderança do comandante que ao ver um conflito instalado, ainda que não considerasse relevante, deveria ter buscado a realidade dos fatos, era anabolizante? Ele tinha autorização? É necessário autorização? Pode oferecer prejuízo ao trabalho? E esclarecer. E exercer ainda sua autoridade para fechar questão sobre o assunto, quando esclarecido.

Quanto ao imediato e o chefe de máquinas, ambos se comportaram de forma, no mínimo, imatura e irresponsável  já que ambos, pela natureza da atividade, representam autoridade dentro da tripulação.  

A minha história na empresa estava só começando. Era só o primeiro dia.  

- As coisas começaram quentes, pensei. E fiquei imaginando o que viria depois...



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