segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Em tempo de manifestações

Bem no início desses tempos de manifestações, saí correndo pela manhã para o trabalho e como a lei de Murphy quase sempre funciona, não encontrei um taxi àquela hora da manhã. Parei o primeiro que passava por ali e, comprovando a tal lei, naquele dia o trânsito estava especialmente ruim. Como é de praxe, pelo menos na cidade do Rio, a conversa entre passageiro e motorista acaba acontecendo e foi em função do trânsito caótico, balbuciando algumas revoltas corriqueiras, que conheci a história daquele homem.  

“Que droga esse trânsito, essa cidade está um caos mesmo, quando não é uma coisa é outra.”

“É”, disse ele, “estamos vivendo tempos difíceis.”.

“E o pior que não temos pra onde fugir porque se não venho de taxi tenho que ir de metrô e aí é aquela loucura: calor, aperto. Até chego mais rápido, mas o preço é alto, então prefiro pagar táxi mesmo”.

“Pra mim também não compensa a corrida com este trânsito. Se continuar assim vou embora cedo pra casa hoje. Ainda mais que hoje tem manifestação no centro da cidade.”

“Olha, eu sou a favor dessas manifestações, acho que todo mundo deveria ir ver com os próprios olhos. Ontem mesmo eu fiz questão de ir ver a manifestação na Rio Branco. As pessoas criticam mas não vão lá ver com os próprios olhos e tirar suas próprias conclusões. Fica aí a imprensa manipulando os dados, dizendo que só tem arruaceiro e o que eu vi foram pessoas de bem, de todas as idades, vi uma manifestação pacífica. Muitas frases escritas nos cartazes tinham a ver com coisas que eu também discordo.”

“É dona, eu não sou contra, mas tenho muito medo. Eu aviso pro meu filho que se tiver movimento, confusão, não para em lugar nenhum, nem se for pra ficar olhando, vai embora correndo pra casa, porque é muito perigoso”.

Ainda sim, insisti mais um pouco. “Mas é importante se manifestar.”

E foi aí que percebi que, neste caso, a história seria diferente. “A senhora quer saber, eu tenho dores no corpo até hoje porque entrei de gaiato num momento como esse de manifestações em 1970. Fui todo quebrado, a minha arcada dentária, perdi todos os meus dentes e vivo a base de remédio porque até hoje meu corpo dói, apanhei muito”.

Naquele momento meu sensor disparou e eu comecei a prestar atenção naquele motorista de taxi, que falava sem olhar pra trás. Só conseguia ver o seu rosto pelo espelho interno. Seu nome não importa agora. Lembro apenas que era um homem claro, de cabeça branca, imagino que de uns 60 e poucos anos. Neste momento, me calei e incentivei que ele contasse com mais detalhes a sua história. Foi aí que percebi também que ele queria falar, que ele precisava falar. 

“Eu era um garoto e meu pai, português, tinha um pequeno comércio, onde eu ajudava, além de estudar. Como sempre eu ia até o centro pra fazer pequenos trabalhos, ir ao Banco, contador, essas coisas. Meu pai me avisava que era pra ir num pé e voltar no outro. Naquele dia, eu saí do escritório do contador e vi uma confusão na rua. Acho que era um movimento estudantil. Na hora, fiquei curioso e dei uma paradinha ali. De repente uns policiais me pegaram e me rebocaram pra dentro de um camburão. Enquanto eu tentava dizer alguma coisa, eles me davam coronhadas. Quando acordei já estava preso, sem entender nada. Só lembro de apanhar muito. Eles quebraram meus dentes, meu maxilar e tive várias costelas quebradas”.

“O senhor sabia onde estava? Como conseguiu sair?”, perguntei curiosa.

“A minha sorte é que as pessoas ali em volta me conheciam porque eu ia todo mês e avisaram no escritório do meu pai. Eu fiquei no quartel da Tijuca, meu pai descobriu e conseguiu me tirar de lá porque, por sorte, ele tinha conhecimento com alguns militares, que eram seus fregueses. Só assim ele conseguiu chegar até um contato importante, do alto comando do exército. Mesmo assim, meu pai só conseguiu me tirar de lá depois de duas semanas”

“Nossa, que estória hein... O senhor é a primeira pessoa que conheço que viveu uma situação assim. A gente ouve falar, mas...”

“É , a gente acha que nunca vai acontecer com a gente. Quando meu pai foi me buscar eu estava quase morto, achei que ia morrer mesmo. Fui pro hospital e fiquei muito tempo até me recuperar pra ir pra casa e depois foram várias cirurgias, especialmente na boca porque eles trituraram meu maxilar. Não sei como não morri. Acho que é porque não tinha mesmo que morrer. Eu era um garoto bobo, não tinha a menor ideia daquilo tudo”.

“Mas e aí, como foi depois disso?”

“De vez em quando tenho pesadelos, mas o pior ainda é a dor. Nunca mais fui o mesmo. acabei não me formando. Mas eu não reclamo. Meu pai sofreu muito com isso também”, terminou, silencioso e pensativo.

Já estávamos chegando ao meu destino e eu, muda, refletia sobre aquele depoimento imprevisível numa manhã de segunda-feira. Permaneci com esta história de vida na cabeça e agora entendo que foi esse encontro, esse relato, que me motivou a voltar a escrever, falar sobre as pessoas, histórias e eventos que estão por aí. Momentos que esbarram com a gente e nos afetam de alguma forma.

É impossível sair imune de um encontro. Afetamos e somos afetados pelo outro o tempo todo.

No táxi, pago o valor da corrida, ele me entrega o troco, me agradece e diz:
“Desculpe aí qualquer coisa”.


 Sorrimos.

Um comentário:

Unknown disse...

Eu, Ana Clara, Gustavo e Nando, adoramos seu post, continue! Está ótimo. Parabéns