Porque a vida não é feita somente de grandes acontecimentos mas principalmente de cenas e histórias da vida privada, das ruas, do mundo corporativo. Estórias vividas, encenadas ou ouvidas.
O final do ano de 2016 foi marcado por um evento muito
trágico na minha vida. E na vida de toda a família: minha mãe sofreu uma parada
cardíaca na rua, foi ressuscitada e, desde o dia 11 de dezembro, está em coma.
A principio na UTI e agora no quarto. Esse
acontecimento, nos arrebatou e nos deixou a todos, filhas e netos,
desconectados, tentando descobrir afinal um sentido para o fato.
O imponderável
aconteceu em um momento que eu e minha mãe estudávamos nossa biografia,
decifrando o fio vermelho de nossas estórias, através da pesquisa da vida de
nossos antepassados, especialmente sobre a postura das mulheres da familia e a
influência disso nas nossas escolhas e decisões.
Com o registro dos seus escritos e palavras, fica marcado para
mim em sua biografia, a trajetória da menina que nasceu de familia muito pobre
na pequena cidade de Ubá, interior do Estado de Minas Gerais. A sexta filha de
uma familia de 9 irmãos. Uma filha, como
os demais, que cresceu na dureza de sua realidade, com tão pouco afeto e poucos
recursos. De um pai de origem italiana muito rude e de uma mãe cabocla, bondosa,
mas preocupada com a sobrevivência de sua prole.
Lembro das estórias da menina que saía de casa a pé e
descalça para a escola em um horário que era medido pela localização do sol
entrando pela porta da casa e marcando o chão de terra batida; levava consigo um pedaço
de pau para se proteger no caminho e voltava carregando roupas das senhoras da
cidade para a mãe lavar. Vida dificil.
Lembro de suas lembranças de ter que fazer os deveres da
escola debaixo do poste de luz na rua e de escovar os dentes com carvão em
pó.Deve ter sido bom porque ela
conservou seus dentes originais e brancos. Da menina que era gulosa, desde
pequena, e não era só de comida; tinha fome de saber. Lembro ainda da menina que só podia coroar Santa
Teresinha nas festas da igreja, porque só as meninas ricas da cidade podiam
coroar Nossa Senhora. De sua devoção por Santa Teresinha, herdei o nome. A menina demorou para ter um sapato de
verdade. A menina foi introduzida muito cedo no trabalho na fábrica para poder ajudar
a família.
A adolescente continua sua busca pela espiritualidade e se
torna filha de Maria. Encontrou o amor, que se transformou no marido e juntos
tiveram três filhos, esse amor, no entanto, não chegou a preencher o espaco e a
necessidade de afeto e segurança.Repetindo a estória de sua mãe, já numa nova versão, viveu preocupada
com a sobrevivência da famíia e em dar um destino pessoal e profissional melhor
para os filhos, cavando oportunidades.
Herdou a coragem e o ensinamento de minha avó Lucinda, que
saiu da pequena cidade para dar vida melhor para os filhos. Independência
sempre foi o seu lema. Para o bem e para o mal, ela descobriu logo cedo que
precisava contar consigo mesma sempre. Não sobrou espaço para reproduzir muito
afeto. Demonstrava seu amor com dedicação. Com comprometimento. E senso de
justiça.
Mulher-mãe passou pelo maior sofrimento de perder um filho. Depois
disso foi capaz de sobreviver a outros tantos momentos dificeis, caiu e se
levantou muitas vezes. E pareceu ser imbatível para o câncer e suas
consequências, para os atropelamentos e
traumatismos. Nós, filhas e neto (a) s assistíamos a sua luta e nos acostumamos
a vê-la sair vitoriosa de tudo. Mulher de muitas vidas. E por isso colocamos
toda fé na sua força imbatível e retorno.
Esperávamos que mais
uma vez, ao ser confrontada por uma
parada cardíaca ,retornasse de sua morte súbita. Ela retornou, de certa forma, demonstrando sua
força física e vitalidade, mas não da mesma forma. Acordada sim, mas para o
outro lado da vida.
Talvez agora ela esteja repassando sua biografia e
conseguindo entender o fio vermelho de sua estória. Fazendo um balanço e contabilizando suas grandes conquistas e o
sentido para as suas perdas e desejos não realizados.
Do lado de cá, tentamos nos acostumar com sua ausência. Como nos fez fortes para enfrentar a vida, permanecemos
ao seu lado, amparando, assistindo e resignando-nos com o propósito divino.
Com seus escritos darei continuidade à nossa estória.
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